Still a babe

Sempre que olho para o passado, sempre que me revejo, vejo uma menina de olhos grandes, escuros e curiosos. Com cabelo selvagem e desconfiado. Lembro-me do meu sorriso fácil em criança, de vestir as saias da minha mãe, de andar pela casa com os sapatos de salto dela embora os meus pés fossem umas formigas neles calçados. Lembro-me de como achava a vida fácil, de como me sentia leve. Lembro-me de quando pintei o cabelo de rosa choque com aquelas tintas temporárias, de comer tostas com manteiga e cacau em pó ao ver a "Raven", de desenhar nas paredes da sala, de brincar aos piratas e de vestir roupa à minha cadela. Pensei que ia ser sempre assim: feliz.
Na primária sofria de um bullying algo grave. Não tinha amigos, era a rapariga estranha que não falava e quando falava, bem, falava mal (só comecei a falar mesmo nos meus 7 anos e não conseguia dizer algumas letras. Era uma fofa, óbvio, eles é que não entendiam isso). Isso fez com que eu me tornasse, desde cedo, uma menina insegura e com pouca confiança. Sozinha. Sempre me senti muito sozinha. No entanto, mesmo nessa altura, conseguia ser feliz. Chegava a casa e ligava a TV no Panda, via as "Sailor Moon" enquanto fingia ser a Usagui, brincava com a minha barbie "Bela" do filme "A Bela e o Monstro.", metia a mão de fora da janela do carro para sentir o vento, corria atrás da minha sombra, gostava de pegar nos caracóis e vê-los a andar pelo meu braço. Vivia feliz no meu mundo. 
Entendo agora que, apesar de toda essa felicidade, as marcas começaram aí. E que, por mais surpreendente que pareça, a definição de uma personalidade insegura e sem confiança começou a estabelecer-se aí.
Não sei bem descrever como tudo aconteceu. Quando eu comecei a fechar-me cada vez mais. Quando eu deixei de me sentir bem em grupos de pessoas muito grandes, onde eu só conseguia ser eu e ser divertida se me sentisse mesmo à vontade e na dificuldade em que tinha em isso acontecer. Lembro-me da ansiedade que se apoderava em mim quando estava num meio cheio de pessoas e só conhecia duas mais ou menos. Fechava-me que nem uma pérola numa ostra, agia de forma tão estranha e tão desconfiada. Sinto que me perdi pelo caminho e que tive que remar para ir ao encontro da pessoa que estou destinada a ser.
O meu corpo (digam comigo: o meu corpo) começou a desenvolver-se muito rápido e desde nova senti o que era ser assediada. Lembro-me, infelizmente lembro-me, de um amigo do meu avó que me pedia para sentar no colo dele e tentava-me tocar nas pernas. Lembro-me de estar nos intervalos do liceu e rapazes que nem conhecia apalpavam-me, de uma forma tão natural que me fazia sentir culpada de não achar isso agradável nem engraçado. Lembro-me de haver professores que diziam que era demasiada bruta com os rapazes quando demonstrava desagrado com estas atitudes e que diziam que eu precisava era de arranjar um namorado. Lembro-me de ser chamada de vadia por usar meias de rede. De dizerem que eu me atirava aos rapazes só porque gostava de brincar com eles e dava abraços aos meus amigos. De gritarem por mim no meio do liceu a insultarem-me, a rirem por eu usar decotes, a comentarem o meu corpo, a julgarem-me por ter dado uns beijos a alguém na idade da descoberta. Sentia, de uma forma constante, que o meu corpo não me pertencia, que eu era uma pessoa suja, que talvez a culpa de todo aquele assédio era realmente minha. Todo o meu ser era reduzido ao meu corpo, ao aspecto do mesmo e, quando eu tentava trilhar o meu caminho percorrendo longos caminhos longínquos daquilo que é considerado o comportamento de uma rapariga, eu era humilhada e criticada.  
Lembro-me da constante batalha na minha cabeça sobre a sexualidade. Sobre a minha sexualidade. Sobre eu sentir-me atraída tanto por homens como por mulheres. Não tinha representatividade, não sabia bem o que significa ser bissexual, não tinha um nome para lhe chamar. Sentia, no fundo, que todos os meus sentimentos eram puros até ás pontas dos meus dedos, mas sentia uma necessidade enorme em os esconder. Sempre ouvi muito, até por parte de alguns familiares, que "isso dos bissexuais não existe. Ou é peixe ou é carne!". É cruel crescer a achar que o que sentes, que o que és, é inválido e que não existe. É de uma solidão e de uma auto-destruição enorme lidar com estes preconceitos e mitos. Foi muito duro durante o tempo em que a minha personalidade se estava a definir, em vez de abraçar a pessoa que sou, estar constantemente a negar e a ignorar o que sou. Aos meus dez anos tinha uma apaixoneta por uma amiga minha. Algo tão inocente! Um dia estava sozinha e um grupo de raparigas vieram ter comigo a perguntar se eu era lésbica e a gozarem com isso, a empurrarem-me.
Hoje em dia amo-me. Adoro o meu corpo, adoro acariciar-me e mimar-me. Tenho uma boa relação com o meu corpo e com a comida (adoro comer!). Nem sempre foi assim. Por gostar tanto de comer, ouvia vezes incontáveis "não comas mais que vais engordar." ou mesmo "estás mais gorda, tens que ter mais cuidado!". Odiava o meu corpo. Maltratava-me. Olhava ao espelho e imaginava se podia pegar numa tesoura e cortar a gordura. Almoçava um iogurte líquido e odiava-me. Escrevo  isto em lágrimas por me relembrar a sensação de me olhar ao espelho, o tão pouco amor próprio que tinha por mim mesma, a falta de estima. Aceitar o meu corpo, os meus defeitos marcados na minha pele, é uma batalha que ainda se faz sentir nos meus dias de hoje. Porém, antes sentia-me desconfortável na praia. Hoje, consigo pousar para máquinas fotográficas nua, confiante, a mostrar a minha vulnerabilidade sem medos. A nu. 
Hoje consigo identificar muitas causas que definem e moldaram o que sou, o que sinto. Vesti já demasiadas roupas que não as minhas para ser aceite nesta sociedade intolerante ao invés de me aceitar. De me vestir. De mergulhar no meu aroma. Sinto que todos nós sofremos com esta sociedade machista, intolerante, cheia de preconceitos e de padrões de beleza. A minha história não é única, muitas outras mulheres partilham isto comigo: de pequenas sonhadoras que cresceram e dispersaram nas suas próprias caminhadas. Quantas raparigas aprenderam a odiar-se? Quantas raparigas se sentem culpadas pelos assédios sexuais? Quantas pessoas se escondem no armário?
Chega. Chega de nos separar e de nos enfraquecer. 
Imagino-me num parque de diversões, deitada a olhar as nuvens, a rodar enquanto o meu cabelo brinca com o vento a sentir aquela velha sensação: leve. Numa nuvem de mil e uma cores, rodeada de flores, eu quero sentir-me leve. 


Fotografia por Daniel Neves 

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