Full moon

"Fecha os olhos. Respira fundo. O que vês?"
Vejo-me a correr. Sempre a correr, num longo vestido branco e de pés descalços para sentir bem a terra molhada a cada passo, no meio de fetos e de espinhos que rasgam a minha pele sem arrependimento. E corro naquele verde imenso e abundante, sinto os cortes a arder e a pele a gelar e paro. Paro, fecho os olhos e vejo-me dentro de uma casa velha de madeira. O ar é sufocante, o cheiro a pó faz o meu nariz torcer e a luz laranja entra pelas janelas partidas. Tiro o lençol branco e velho, com rasgões e nódoas de café, e deixo o espelho exposto no centro da sala. Encaro-me. Eu e o espelho: os bons velhos inimigos.
E tudo gira rápido, as minhas mãos com cortes começam a tremer com sinais de fraqueza e o meu cabelo rebelde tapa-me os olhos. Corro.
Corro daquela casa para esquecer de mim, do meu olhar. E paro no alpendre com a respiração ofegante e fecho os olhos.
Estou a andar de comboio sentada a beira da janela aberta. Sinto o meu cabelo a dançar com o vento e coloco o braço de fora para sentir o frio. Não há um destino certo, não me interessa muito o destino mas sim a viagem. O fugir. O correr. As feridas já estão a curar-se e o cachecol esconde as marcas do passado. Respiro fundo, estou longe daquela floresta e daquela velha casa. Estou só, longe de todos e ninguém sabe o meu nome. Posso ser quem quiser. Começa a chover e fecho a janela com dificuldade enquanto trinco o lábio e, de uma maneira que não sei explicar, faço um corte no dedo. Levanto-me sob as All Star velhas e caminho com cuidado até à casa-de-banho. Lavo as mãos enquanto o sangue se mistura com a água e olho-me ao espelho. Olho o meu olhar e lembro-me quem sou. E tudo muda, uma vontade de gritar e de fugir invade-me. Fecho os olhos.
Volto a floresta e depois à casa e ao comboio... e por mais que grite, que a minha pele se rasgue, que eu fuja... continuo a ser eu. E eu quero chorar, quero amar, quero perdoar mas... O meu corpo está gasto. A minha alma cansada. E eu luto, vou contra todos os muros e trepo todas as árvores, parto os meus ossos e grito para sair de mim. Para sair da minha cabeça, para não estar presa em mim. Até um dia que o cansaço venceu-me e adormeci em forma de feto no meio da floresta.
Entro na casa de forma calma. Cansei de correr. Olho-me ao espelho e fico a reparar em todos os detalhes: na queimadura no meu pulso, nas marcas no meu braço, no meu cabelo selvagem e longo, nos arranhões nas minhas pernas. Olho para os meus olhos negros e rendo-me. Rendo a mim mesma e começo de repente a engolir em seco enquanto as lágrimas caem pelo meu rosto frágil e duro. Deixo-me cair na madeira agarrada à minha barriga e rezo. Não a um Deus mas a mim mesma. Rezo por mais um dia, por mais paz, por mais rendição. Rezo para sentir e para ter coragem. Olho-me ao espelho enquanto os meus lábios tremem e o lilás por baixo dos meus olhos escurece. Estou só. Fugi tanto de mim e agora estou só porque criei uma muralha de gelo à minha volta. E volto a rezar.
Rezo a mim porque desde cedo fui eu comigo mesma, sobrevivi sozinha e tornei-me sozinha. E quando não aguentei mais fugi e corria. Mas isso acabou.
Volto a floresta, respiro fundo e sento-me na terra sob a lua nova. Sinto-me uma loba solitária ferida. Sinto-me ferida. Mas sinto-me guerreira ao mesmo tempo. Tenho uma guerra dentro da minha cabeça, por mais que fuja não consigo fugir de mim. Quero arrancar toda a dor, todas as memórias mas, é inútil, porque se não pensar durante o dia elas atacam-me de noite.
Tenho monstros dentro de mim. Mas bem... Sou uma loba, não é? E os lobos dão sempre luta. 

                                                           Fotografia por Nádia Dias 


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