O jardim do liceu
Gostava de quando os dias mais quentes chegavam e íamos para o jardim a beira da tua casa. Gostava de poder voltar a usar sandálias e sentir os pés livres, de correr na relva e saltar para conseguir chegar ás flores mais bonitas das árvores.
A vida era bonita e bastante simples, na verdade, era simples de tão bonita que era. O tempo passava de uma forma mais tímida, as minhas feições mudavam lentamente e um sentimento de imortalidade era tido como certo. Nada iria mudar, nada iria ser diferente, e a vida seria sempre bonita.
Gostava tanto que o Universo voltasse a dar-me um dia de Agosto contigo, vô. Voltar a ir contigo ao jardim do liceu, tirar as sandálias para sentir a terra seca entre os meus dedinhos e deitar-me na relva a ver as nuvens. Sentir a minha pele aquecida pelo Sol, a mistura de cheiros das flores que me rodeavam, a felicidade de conseguir fazer festinhas a um cão que lá passasse e por ficar minutos a admirar uma borboleta. Mas o mais importante: voltar a fazer isto tudo sob o teu olhar atencioso.
Ficavas sempre sentado num muro, com um jornal por baixo para não estragares as calças, a conversar com amigos enquanto me vias com atenção. Engraçado, como o tempo passava de uma forma diferente para nós os dois. Agora é que consigo entender isso. Havia um misto de felicidade e orgulho sempre que me chamavas para irmos lanchar e eu levava até ti as flores mais bonitas que tinha colhido. E tu rias-te, amarravas o meu cabelo completamente despenteado e cheio de pequenas folhas e ramos e olhavas-me bem nos meus olhos negros. Não o dizias, mas eu sabia-o. E lá íamos juntos ter com a avó, de mãos dadas enquanto as cores do dia começavam a ser outras. Ás vezes tirava-te a boina e brincava com ela pelo caminho, outras vezes, o sono era tanto que só queria chegar à vossa casa e ir dormir para o sofá. Por falar na vossa casa... que saudades do cheiro dela!
O dia em que percebi que a vida não era sempre simples e que por mais que o Sol te aqueça vais sofrer, foi o mesmo dia em que percebi que o tempo passa na realidade de uma forma diferente. Que tudo muda, que nada era imortal. E eu além de triste estava chateada porque tu não podias levar-me mais ao jardim.
Anos foram passando e eu cresci, tornei-me adulta e, como natural, tive momentos maus na minha vida. Muitos mesmo naquele jardim ao lado do liceu. O mesmo jardim que me viu em criança, viu-me a crescer, a mudar, a sofrer. Sentei-me muitas vezes no "teu" muro a fumar enquanto chorava e perguntava a mim mesma "O que vou fazer? Como isto chegou a este ponto?"... Até que fui para a faculdade e deixei de ir a esse jardim. No entanto, como aprendi, o tempo passa e tudo muda. Voltei a ser feliz, confiante e a sentir-me leve. Sinto-me tão mais jovem, segura e com um rumo.
Há poucos dias tive que ir a essa zona tratar de uns assuntos. E ao passar pelo jardim... um enorme sentimento de amor apoderou-se de mim. E voltei a sentar-me naquele muro, a sentir-me feliz e orgulhosa de mim, e sobretudo: senti-me em casa. Amada, em segurança, forte e em casa.
Olhavas-me nos meus olhos negros e mesmo sem o dizer eu sabia-o. E mesmo agora que aqui não estás eu voltei a saber. O amor é muito mais poderoso do que a dor e o sofrimento. Mesmo em lugares onde o teu coração foi partido, em que sofreste e choraste, se lá houve amor... então essa será a recordação mais forte.
Aquele jardim será sempre como uma casa para mim. És a minha raiz e o meu eterno Verão, avô.
Fotografia por Ana Araújo
@intothespace__



Mas que texto lindo! Deu-me um pontadinha no coração, daquelas que trás lembranças e uma avalanche de emoções. Daquelas que abala por dentro e trás saudades. Muitas saudades.
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